
O Seminário Internacional Pessoas em situação de rua: cuidado integral e direitos já!, realizado pelo coletivo Trilhas de Cuidado nas Ruas, na Fiocruz Brasília, encerrou suas atividades, no dia 23 de outubro, com um debate sobre os desafios e potências do Plano Ruas Visíveis. A mesa reuniu Maria Luiza Gama, do Departamento de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC); Laureci Dias e Sheila Costa Marcolino, conselheiras do CIAMP-Rua Nacional; e contou também com a presença da secretária-executiva do MDHC, Janine Mello.
Mediando a discussão, Sheila Costa Marcolino destacou a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 976, que reconheceu o descumprimento da Política Nacional para a População em Situação de Rua pelos entes federativos e determinou a adoção de medidas para sua efetivação. Sheila contextualizou ao explicar que a decisão motivou o MDHC a construir uma resposta concreta dentro do prazo estabelecido pela Corte, o que resultou no Plano Ruas Visíveis, lançado em 2023.
Maria Luiza Gama apresentou um histórico dos marcos que levaram até esse momento, começando pela política nacional voltada para a população em situação de rua, instituída pelo Decreto nº 7.053/2009, citando a decisão do STF deu caráter obrigatório à adesão de estados e municípios, e chegando ao plano em foco no debate. Ela ressaltou que o Ruas Visíveis prevê investimento total de quase R$ 1 bilhão, distribuído em sete eixos temáticos, e apontou como principais desafios o fortalecimento da articulação interministerial e interfederativa — sendo esta última a mais complexa, diante de certa indefinição de papéis entre União, estados e municípios. “O decreto deixou de ser opcional, e isso exige uma nova dinâmica de articulação entre os entes federativos, algo desafiador”, reconheceu. Entre os pontos de atenção mencionados, destacaram-se a necessidade de garantir repasses orçamentários continuados, a inclusão permanente da população de rua como público prioritário na Política Nacional de Habitação e a regulamentação nacional sobre a remoção de pertences dessas pessoas em ações de zeladoria urbana.
Durante a apresentação, Maria Luiza também mostrou o funcionamento do Integra Pop Rua, ferramenta que sistematiza informações sobre políticas municipais, e lamentou a ausência de mecanismos legais que obriguem estados e municípios a compartilhar dados com o MDHC por meio desse insrtrumento. Ela convidou os gestores públicos a conhecerem o portal do plano (ruasvisiveis.mdh.gov.br), que reúne orientações sobre adesão e execução das ações.
Representando a população em situação de rua, Laureci Dias criticou a forma como o plano foi inicialmente construído, afirmando que ele chegou “de cima para baixo, sem escuta das pessoas que vivem nas ruas”. A conselheira lembrou que o CIAMP-Rua só aceitou o documento para, posteriormente, propor adequações que reflitam as reais necessidades da população. “A dignidade das pessoas tem que ser respeitada. A rua precisa ser ouvida. Quem está na rua é gente”, afirmou Laureci, que aproveitou a oportunidade para compartilhar sua trajetória de resistência e superação após sobreviver a violência doméstica.

Encerrando a mesa, Janine Mello reforçou o compromisso do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania com a consolidação do plano. Ela destacou a importância do CIAMP-Rua como espaço qualificado de participação social e lamentou o enfraquecimento do diálogo democrático nos últimos anos. “Temos leis e decretos, mas ainda enfrentamos muitas dificuldades de implementação. Este momento é de reconstrução e de ação efetiva, não apenas de reflexão”, afirmou.
O debate reforçou a importância de garantir continuidade institucional, escuta ativa e responsabilidade compartilhada na execução do Plano Ruas Visíveis, reafirmando o compromisso com a dignidade e os direitos das pessoas em situação de rua.

Segundo ela, o material também servirá como base para a organização de seminários temáticos, estudos comparativos e produções científicas voltadas à população em situação de rua. “Cada vez mais precisamos fortalecer o cuidado de forma intersetorial, envolvendo saúde, educação e assistência”, afirmou. A primeira edição está disponível online.
Experiências internacionais
O painel apresentou ainda um panorama das estratégias adotadas em diferentes países para enfrentar a exclusão social e garantir moradia. Paula Correa, consultora de Proteção Social no Banco Mundial, destacou o modelo “Housing First” (Moradia Primeiro), originado em Nova Iorque e que tem gerado resultados positivos em países como Finlândia e Estados Unidos.
“A situação de rua é um fenômeno complexo que exige respostas diversas, integrais e centradas nas pessoas”, pontuou Paula. Ela explicou que a Finlândia reduziu em 78% o número de pessoas em situação de rua desde 2008, ao priorizar a oferta de moradia antes de outras intervenções, sempre acompanhada de serviços de saúde, educação e emprego.
Nesse modelo, a moradia não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida para a reconstrução da vida, um direito garantido de forma incondicional, acompanhado por equipes multidisciplinares de saúde e assistência.
Para ela, não existe um único modelo de sucesso, mas princípios que podem ser adaptados a cada realidade. “É fundamental entender que as soluções precisam partir das necessidades reais das pessoas, e não de uma lógica punitiva ou condicional. A casa é o primeiro passo, não o prêmio”, enfatizou Paula.
Ela apresentou também experiências de países como França, que aposta na moradia social com aluguel subsidiado e intermediação no mercado privado, e nos Estados Unidos, onde o programa coordena, em âmbito municipal, redes de serviços integrados em saúde, moradia e apoio jurídico.
Paula destacou ainda a importância de ações de prevenção, citando exemplos de políticas que evitam a perda da moradia por motivos econômicos, de saúde ou violência doméstica. “A prevenção é uma responsabilidade compartilhada entre habitação, saúde, educação e assistência social. É preciso evitar que as pessoas cheguem à rua, e isso só se faz com redes fortalecidas e integradas”, completou.
Já o colombiano Roberto Carlos Ângulo, secretário distrital de Integração Social de Bogotá, apresentou o redesenho dos serviços públicos voltados à população em situação de rua na capital. Ele explicou que o governo local adotou o conceito de exclusão extrema, que ultrapassa a ideia de pobreza: é a acumulação simultânea de privações sociais, econômicas e comunitárias, associada à perda da residência habitual. “A habitabilidade na rua não é apenas uma forma de pobreza, mas uma forma extrema de exclusão social”, afirmou.
Com base em um censo realizado em 2024, Bogotá mapeou as causas e características da exclusão social. A pesquisa revelou que o tempo médio de permanência nas ruas é de 12,6 anos, e que um em cada cinco habitantes de rua começou essa trajetória antes dos 18 anos. O que, segundo Roberto, evidencia falhas estruturais no sistema de proteção à infância e juventude.
A partir desses dados, a cidade estruturou um ecossistema de serviços habitacionais diversificados, que inclui moradias transitórias, hotéis sociais e residências para idosos, além de estratégias conjuntas com o sistema de saúde para prevenção e tratamento do consumo de substâncias.
“Nosso desafio é transformar o modo como a cidade enxerga e acolhe essas pessoas. Elas não são o problema, são parte da solução quando lhes damos oportunidade de reconstruir vínculos e exercer cidadania”, concluiu Roberto.
Por Nathállia Gameiro (Fiocruz Brasília)

