Conhecido nacionalmente por seu trabalho com a população em situação de rua em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti convidou o público presente no primeiro dia do Seminário Internacional Pessoas em Situação de Rua: cuidado integral e direitos já!, realizado na Fiocruz Brasília, a uma profunda reflexão ética sobre o papel das políticas públicas e da sociedade no enfrentamento da exclusão social.

“É fundamental nos perguntarmos, eticamente: estamos a serviço de quem? Do Estado, do governo ou do povo? Os governantes existem para servir ao povo, e não o povo para servir aos governantes”, enfatizou.

Para o padre, o grande desafio está em resistir à lógica neoliberal baseada na meritocracia e no individualismo, que transforma o capitalismo em uma espécie de religião e o capital em algo divino. “Dentro desse sistema, a população em situação de rua e os pobres são os sacrificados. Em uma estrutura capitalista neoliberal, a política pública muitas vezes se torna instrumento de manutenção da miséria”, afirmou.

Diante dessa constatação, Lancellotti cravou que há um mito no discurso sobre a mobilidade social no Brasil. “Quem nasce pobre, geralmente morre pobre. Quem nasce na rua, muitas vezes morre na rua. Quem morre na calçada, de frio, de fome, de solidão e de abandono, são os pobres. Os ricos só morrem na rua em acidente de carro. As nossas ações, na maior parte das vezes, não são libertadoras”, pontuou.

Como contraponto, o sacerdote defendeu a importância da não aceitação e do questionamento como formas de resistência. “Se nós queremos, como sociedade civil, contribuir, o nosso posicionamento deve ser o de questionar, não se conformar, rebelar-se e perguntar. Não vendam sua consciência ao dinheiro, aos poderosos de plantão, à especulação imobiliária ou financeira. Não se vendam. Muita gente vê a pobreza e a opressão e se cala para não perder o emprego. Essa fala é institucional, mas o nosso limite é o amor. Ou eu amo mais a minha segurança, ou sou capaz de amar a vida do irmão que está ameaçada?”, provocou.
“As estruturas são necessárias, mas precisam estar a serviço da vida e do amor — um amor que é decisão, que apanha, que exige coragem para insistir. Temos que calar o opressor que habita em nós”, completou.

Encerrando sua fala, o padre reforçou o caráter político e transformador da solidariedade. “Precisamos de espaços como este para compreender que a luta de nenhum de nós é solitária; a luta de todos nós é histórica. Cada um de nós tem que ser uma flor e um espinho, um fruto e uma cobrança. Temos que chamar a atenção, sem medo de incomodar. Partilhar o pão numa sociedade que mata de fome é um ato político e revolucionário. Alimentar os que têm fome é um ato de coragem. Aquecer os que sentem frio é um gesto de insubordinação diante de um sistema que retira até o cobertor dos pobres”, concluiu.